A China sabe o que quer do Brasil — e está conseguindo. Sem uma política clara de inserção internacional, o Brasil cede o controle de ativos estratégicos ao gigante asiático, permitindo que setores vitais como energia, portos, agronegócio e minerais críticos passem ao controle chinês.
Enquanto o Brasil opera sem definir quais setores são negociáveis e quais comprometem sua autonomia econômica, a ausência de diretrizes transforma negociações com um regime de planejamento centralizado em um jogo de cartas marcadas.
Os números comprovam a assimetria: investimentos chineses no Brasil saltaram 113% em 2024, chegando a US$ 4,18 bilhões e tornando o país o terceiro maior destino global do capital de Pequim, atrás apenas do Reino Unido e da Hungria. segundo o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).
A expansão ocorreu enquanto o fluxo internacional de capital recuou 11%, segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da ESPM, alerta para o risco de o Brasil replicar uma relação comercial baseada apenas em exportação de matérias-primas. "Nesse contexto, o país precisa estabelecer uma política mais clara de inserção internacional, definindo quais são seus interesses", afirma.
Tensões globais redirecionam capital chinês para o Brasil
A China ampliou investimentos no Brasil em um cenário de maiores incertezas comerciais e tensões geopolíticas. O país consolidou-se como principal receptor de capital chinês entre economias emergentes, enquanto Pequim reduziu em 11% os aportes aos Estados Unidos e em 41% à Austrália entre 2023 e 2024.
Segundo analistas do Bradesco, a "priorização da agenda doméstica e o ambiente geopolítico global mais austero" levam a China a ajustar suas estratégias, deslocando o foco para parceiros como o Brasil. A diplomacia mais alinhada a Pequim favoreceu essa mudança. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou o país no fim de março.
Carlos Honorato, professor da FIA Business School, comparou à CNN Money a abordagem chinesa ao jogo Go, no qual a estratégia se baseia em cercar lentamente o adversário. Segundo ele, Pequim age em perspectiva de décadas, "ocupando mais o espaço para as necessidades que ela tem lá dentro".
O objetivo não é a grande operação pontual, mas a ocupação gradual de posições-chave. Uehara destaca que o Brasil precisa definir como receber e fixar esse capital, pois sem isso o país pode perder esses recursos rapidamente.
Investimentos chineses por empresa no Brasil são menores, mas a presença é mais ampla
Os dados do CEBC revelam a mudança de perfil. As empresas chinesas focam em empreendimentos menos intensivos em capital, mas ligados a inovação e transição energética. A pulverização em múltiplas iniciativas menores dificulta o rastreamento e reduz a visibilidade política, ao mesmo tempo em que amplia a capilaridade em diversos setores simultaneamente.
Essa mudança não é apenas tática, mas estrutural. O modelo econômico chinês permite que o Estado mantenha controle direto sobre grandes empresas. Enquanto companhias ocidentais estão sujeitas à pressão de acionistas e resultados trimestrais, as empresas chinesas têm decisão centralizada, o que permite absorver prejuízos no curto prazo para alcançar metas de longo prazo.
Segundo Uehara, essa centralização confere às empresas chinesas "um pouco mais de determinação" para investir. Muitas delas são estatais, cujo interesse é primariamente econômico — ter negócios e recursos para garantir rentabilidade. Mas o alinhamento com objetivos do Estado chinês é inegável.
Analistas apontam que o Brasil precisa reconhecer essa realidade. O problema agrava-se sem política nacional coesa para proteger os interesses brasileiros.
Energia: o setor de maior dependência chinesa
A China consolidou presença em infraestrutura e energia, área que representa o maior risco de dependência. Entre 2007 e 2024, a eletricidade absorveu 45% do valor total investido, reflexo da compra de hidrelétricas e linhas de transmissão.
No ano passado, o segmento absorveu 34% dos novos recursos, mas liderou em quantidade de projetos com 56% do total — foram 22 empreendimentos, o maior número já registrado em um único ano.
Esse padrão revela estratégia de consolidação: ao ampliar o número de iniciativas em infraestrutura energética já controlada, empresas chinesas aprofundam presença e tornam mais custosa qualquer tentativa futura de reversão.
A maioria desses novos empreendimentos foca em sustentabilidade e energias verdes, mas o interesse chinês em fontes tradicionais não diminuiu. Em 2024, a extração de petróleo foi responsável por 25% dos investimentos no Brasil, chegando a cerca de US$ 1 bilhão, um dos maiores registrados na última década.
A presença estrangeira no setor elétrico gera preocupações quanto à segurança energética e à autonomia de decisão do país em caso de tensões geopolíticas. Uehara reconhece que há discussão sobre a vulnerabilidade que os países enfrentam em "áreas sensíveis" como energia, já que o controle sobre geração e distribuição confere poder de pressão significativo em cenários de crise.
Investimentos chineses no Brasil mostram controle do escoamento de commodities
A expansão chinesa sobre a logística nacional completa o cerco sobre setores-chave. O controle sobre sistemas de escoamento de commodities — produtos básicos como grãos e minérios — confere a Pequim alavanca de influência econômica e geopolítica.
A Cofco International, estatal chinesa de comercialização agrícola, arrematou a concessão do terminal STS-11 no Porto de Santos (SP), a maior operação de seu portfólio fora da China, com aporte previsto de US$ 285 milhões na primeira fase. Ela também comprou 23 locomotivas e 979 vagões com objetivo de transportar até 4 milhões de toneladas de commodities anualmente para esta instalação.
A China Merchants Port assumiu o controle do Terminal de Contêineres de Paranaguá (PR) em 2017 e anunciou acordo para comprar o único terminal portuário privado brasileiro preparado para operar navios petroleiros de grande porte no Porto do Açu (RJ).
Outras estatais chinesas, como a Cosco e a CCCC, manifestaram interesse no leilão do Tecon 10, a maior instalação portuária de contêineres do Brasil, localizada no Porto de Santos, cuja concessão exigirá investimento de R$ 6,45 bilhões.
O cerco no agronegócio
Essa concentração de controle portuário não é coincidência: garante a Pequim não apenas acesso preferencial a commodities brasileiras, mas também capacidade de influenciar preços e fluxos comerciais.
O controle da Cofco sobre o escoamento, "da semente ao porto", permite à China garantir o fluxo contínuo de recursos necessários à sua economia, transformando o Brasil em centro de distribuição para o mercado asiático.
A presença chinesa estende-se para além da infraestrutura. No agronegócio, responsável por 23,4% do PIB brasileiro no ano passado, a penetração alcança toda a cadeia produtiva.
A estatal Cofco International é uma das maiores comercializadoras de grãos no Brasil. Em um movimento de reorganização entre empresas chinesas, ela vendeu a subsidiária Nidera, sediada nos Países Baixos e que atua no segmento de sementes, para a Syngenta, que também pertence ao grupo estatal ChemChina.
Transferência de conhecimento e bancos genéticos
Ativos estratégicos como sementes de milho da Dow AgroSciences passaram para o controle de grupos de Pequim em transação que incluiu acesso total ao banco genético de milho brasileiro. Esse acervo reúne variedades e informações sobre a adaptação da planta ao clima e solo do país. As compradoras foram a Yuan LongPing High-Tech Agriculture e a CITIC Agri Fund Management. A operação representa a transferência de conhecimento acumulado em décadas de pesquisa adaptada às condições brasileiras.
A consolidação da presença chinesa, da produção de insumos à logística portuária, gerou reação externa. O senador republicano Tom Cotton, dos EUA, incluiu no projeto de lei do orçamento dos órgãos de inteligência americanos uma exigência de investigação sobre a expansão chinesa no setor agrícola brasileiro, com justificativa que cita impactos na cadeia de suprimentos e na segurança alimentar global.
Investimentos chineses no Brasil: minerais críticos na mira chinesa
A China ampliou presença em minerais críticos — elementos fundamentais para a transição energética e tecnologias de ponta, que incluem nióbio, tântalo e lítio. O Brasil possui a segunda maior reserva mundial de terras raras.
A China Nonferrous Metal Mining Group adquiriu a mineradora Taboca em Presidente Figueiredo (AM), que atua na exploração de estanho, nióbio e tântalo, enquanto a BYD, que também produz carros elétricos na Bahia, adquiriu direitos minerários sobre dois lotes em região rica em lítio no Vale do Jequitinhonha (MG) em 2023.
Segundo a CEBC, o segmento de mineração absorveu 13% do valor investido em 2024, totalizando US$ 556 milhões. O risco é que o Brasil se limite à exportação de matérias-primas, já que o país ainda não detém a tecnologia necessária para transformar esses minerais em produtos de maior valor, como baterias e componentes eletrônicos, apontam analistas consultados pela Gazeta do Povo.
Expansão geográfica amplifica a influência chinesa
A China também está mudando a dinâmica regional do Brasil. No ano passado, as empresas chinesas investiram em 14 estados brasileiros, seis a mais do que no ano anterior, o maior número registrado desde 2019. O Sudeste ainda lidera o total de empreendimentos entre 2007 e 2024, com 54%, mas sua representatividade no valor investido tem diminuído, caindo de pico de 79% em 2021 para 48% em 2024, um dos níveis mais baixos da série histórica do CEBC.
A dispersão geográfica não é acidental: reflete estratégia de diversificação que reduz a visibilidade política da presença chinesa e dificulta a articulação de resposta nacional coordenada. A descentralização levou ao aumento da presença chinesa em outras regiões, com o Sul ficando com 17% dos investimentos em 2024, o Nordeste com 14% e o Norte com 7%, o que indica que Pequim busca maior capilaridade e abrangência regional.
A ampliação geográfica pode trazer benefícios a regiões carentes de capital, mas também significa que a influência chinesa se espalha para diversas economias regionais, criando múltiplos pontos de dependência simultâneos. A consolidação de presença em setores como energia e logística está presente em grande parte do Norte e Nordeste, o que reforça a estratégia de ocupar espaços e garantir recursos essenciais para a economia chinesa.
Falta de resposta nacional diante do controle consolidado
O controle chinês sobre ativos estratégicos brasileiros deixou de ser tendência para se tornar realidade consolidada. A pulverização em projetos menores e a expansão para 14 estados em 2024 revelam sofisticação: reduz visibilidade política enquanto amplia capilaridade e dificulta coordenação de resposta nacional.
Alexandre Uehara, da ESPM, ressalta que o Brasil precisa definir mecanismos para amarrar esses investimentos chineses e garantir que não sejam redirecionados se outros mercados se tornarem mais atrativos. A vulnerabilidade brasileira aumenta porque o país negocia com regime centralizado capaz de impor metas de longo prazo com determinação superior à de empresas ocidentais pressionadas por resultados trimestrais.
A reação do senador americano Tom Cotton evidencia que o tema transcende a relação bilateral. Trata-se de disputa geopolítica na qual o Brasil se tornou peça de valor. A questão central não é se o capital chinês deve ou não ser bem-vindo, mas definir sob quais condições e em quais setores essa presença pode avançar.
A experiência internacional oferece caminhos. A Austrália implementou mecanismos de revisão obrigatória para investimentos estrangeiros em setores sensíveis, com critérios claros de interesse nacional e poder de veto governamental. A União Europeia criou em 2019 marco regulatório que permite aos Estados-membros bloquear investimentos que ameacem segurança ou ordem pública.
Esses mecanismos não impedem investimentos, mas garantem que ocorram sob condições que protejam interesses nacionais — algo que o Brasil ainda precisa construir.