Era sabido que o Brasil corria risco de apagão. Ou por excesso de geração de energia, quando o sol bate forte, ou por falta dela, no começo da noite. A ameaça foi assunto neste espaço duas semanas atrás.
(O risco persiste. Nos últimos dias, autoridades disseram que vivemos situação "extremamente perigosa" e que estamos "à beira do colapso". Como a proliferação de painéis solares está no centro dessa discussão, as coisas podem mudar para quem gera energia no telhado de casa. Falaremos disso mais adiante.)
Mas aquele texto também lembrava que o setor elétrico tem outras fragilidades, e nesta semana elas ficaram evidentes mais uma vez.
O apagão de terça-feira (14) não ocorreu nem ao meio-dia nem no fim da tarde, como se temia, e sim de madrugada. Não teve relação com produção ou consumo de energia, e sim com o sistema de transmissão.
Começou com um incêndio numa subestação no Paraná, episódio que o ministro Alexandre Silveira definiu como pontual. As consequências, ao contrário, foram abrangentes: todos os estados foram afetados de uma forma ou de outra. Segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a interrupção derrubou o equivalente a 12% do consumo nacional.
(A demanda de energia de madrugada é maior do que se supõe. Naquele instante, passava de 78 gigawatts, pouco abaixo da média diária de 82 GW.)
Não foi tão ruim quanto o apagão de 15 de agosto de 2023, que afetou mais de 30% do consumo pouco antes das 9h da manhã e demorou seis horas para ser totalmente revertido. Nem por isso o novo blecaute foi coisa ordinária.
Ao menos um especialista viu falha grave de infraestrutura. Para ele, um problema numa subestação não poderia ter se alastrado tanto, e a luz deveria ter voltado no país todo em questão de minutos. Em alguns locais o retorno foi rápido, mas no Sul a recomposição total demorou duas horas e meia.
Outros estudiosos dizem que a propagação da queda de energia é efeito colateral do Sistema Interligado Nacional (SIN). Com mais de 170 mil quilômetros de linhas, ele permite que a energia gerada em uma região socorra outra, reduzindo custos e riscos de escassez. Por outro lado, parece estar deixando o país mais vulnerável a falhas em cascata, transformando ocorrências locais em questões nacionais.
Pegou fogo aqui, faltou luz lá longe
O que houve na madrugada de terça foi mais ou menos o seguinte. Primeiro, um reator de uma linha de transmissão da Eletrobras explodiu e provocou um incêndio dentro de uma subestação da Copel em Campo Largo (PR), na região de Curitiba. Isso causou o desligamento da subestação e a desconexão entre a Região Sul e as demais.
O Sul, que naquele momento exportava 5 GW ao Sudeste, ficou isolado do restante do país. Cerca de 1,8 GW do suprimento de energia na região caiu e 9 GW de geração foram "rejeitados", pois o escoamento da energia estava prejudicado.
Nas demais regiões, entrou em cena o Esquema Regional de Alívio de Carga (Erac), no qual o ONS corta o fornecimento a determinados locais para reequilibrar oferta e consumo e evitar maiores danos à rede. Isso afetou um total de 8 GW no Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste.
As companhias elétricas descuidaram da manutenção de seus equipamentos? A reação do ONS foi exagerada? Um incidente localizado deveria ter apagado a luz em tantos lugares? A retomada foi lenta? São questões que as investigações poderão responder.
Fato é que, novamente, eventos pontuais prejudicaram boa parte do país. No apagão de 2023, tudo começou com falhas numa linha de transmissão e em equipamentos de controle de tensão no Nordeste.
E o que os painéis solares têm a ver com o apagão?
O sistema de transmissão, como se vê, foi protagonista dos maiores apagões dos últimos anos. Mas não é dele que todos estão falando. A obsessão de autoridades e especialistas são os painéis solares que geram energia em mais de 3 milhões de residências brasileiras.
Com tamanha produção "doméstica", em períodos de grande insolação o ONS se vê obrigado a desativar grandes parques geradores – principalmente eólicos e solares no Nordeste – para evitar sobrecarga. Os donos dessas usinas dizem ter perdido perto de R$ 4 bilhões apenas neste ano com o curtailment, e cobram indenização.
O cenário se inverte quando o sol começa a baixar no horizonte. Para compensar a queda de geração dos painéis solares, o ONS precisa mandar usinas hidrelétricas e termelétricas aumentarem a produção rapidamente. Não é trivial: trata-se de substituir, em pouco tempo, a fonte de até 40 GW. Qualquer descuido pode levar a um apagão.
Como a variação da potência é muito mais brusca nas chamadas fontes intermitentes do que em hidrelétricas e termelétricas, gerir o sistema nacional é tarefa cada vez mais complexa. Principalmente durante as "rampas", transições rápidas entre baixo e alto consumo ou baixa e alta geração de energia.
"Isso é extremamente perigoso. Imagine nesse momento de rampa, se tivermos um incidente, o que é perfeitamente possível de ocorrer, uma danificação de um equipamento importante, uma descoordenação de proteção. Simplesmente vai a pique o sistema", disse nesta quinta (16) o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Sandoval Feitosa, em audiência no Senado sobre a Medida Provisória 1304, que altera regras do setor elétrico.
(“Sem cerveja, sem picanha e sem luz!”, respondeu o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) nas redes sociais.)
Na véspera, o relator dessa MP, senador Eduardo Braga (MDB-AM), afirmou que o setor está à beira de um colapso. "Se quisermos salvar o sistema, vamos ter que compreender que cada um dos segmentos vai ter que fazer sua parte."
A fala foi direcionada aos variados lobbies do setor elétrico, que fazem jogo de empurra para não arcar com qualquer ônus. De todo modo, parece inevitável que algo vá mudar para quem tem ou quer ter painéis fotovoltaicos. Em pouco tempo, equipamentos que eram tratados como heróis da sustentabilidade viraram vilões do setor elétrico.
O corte de energia pode chegar ao seu telhado
Dias atrás, a Aneel avisou que é obrigação das distribuidoras cortar a geração distribuída – a dos telhados, por exemplo – quando houver determinação do ONS. Quer dizer: o tal do curtailment, hoje restrito aos grandes geradores, pode chegar à sua casa.
Também há pressão para que sejam eliminados os descontos pelo uso da rede. Junto com o barateamento da tecnologia, eles são apontados como responsáveis pelo rápido crescimento da produção fotovoltaica.
Outras mudanças podem estar a caminho. Uma delas é a adoção de tarifas diferentes conforme o momento do dia, mais baixas quando há sobra e altas quando há escassez – o bom e velho "sinal de preço". A ideia é estimular o gerador a investir em baterias, armazenando o excedente que gera com sol a pino para injetar na rede à noite.